3.3 A relação com as forças burguesas na resistência
Uma questão central nas diferenças no movimento comunista sobre a luta de libertação palestiniana é qual a relação que os comunistas devem ter com as forças burguesas da resistência palestiniana. Por um lado, existe a posição de que os comunistas devem distanciar-se activamente das forças que representam uma ideologia reaccionária. Outros acreditam que distinguir entre diferentes forças da resistência palestiniana e criticar os grupos islâmicos divide a resistência e desvia a atenção do único objectivo relevante, nomeadamente a luta contra o sionismo.
O facto de não podermos partilhar da segunda posição resulta da nossa orientação estratégica. A ligação da luta de libertação nacional com a luta revolucionária pelo socialismo, a rejeição de uma estratégia faseada (por etapas, etapista) para a Palestina significa obviamente que grupos burgueses como o Hamas ou a Jihad Islâmica Palestiniana (PIJ) são concorrentes dentro do movimento de libertação, cuja influência os comunistas devem combater e fazer recuar. Não só essas forças não serão possíveis de ganhar para uma revolução socialista, mas provavelmente um dia agirão como os seus inimigos mortais e farão tudo o que estiver ao seu alcance para a impedir.
Em segundo lugar, a separação da questão nacional da questão de classe, tal como é aplicada pelas forças de resistência burguesas, significa um enfraquecimento da luta de libertação nacional. Só os comunistas são capazes de ligar de forma consistente a luta diária das massas por pão, habitação e condições de vida humanas com a luta contra a ocupação e o apartheid. Só eles podem realmente aproveitar todas as energias e todas as reservas de luta do povo e mobilizá-lo para a luta pela libertação.
Em terceiro lugar, só uma estratégia destinada a organizar a luta de classes também oferece a perspectiva de apelar aos interesses de classe do proletariado do outro lado da fronteira. A este respeito, o domínio do Hamas no movimento de libertação palestiniano é na verdade favorável do ponto de vista dos sionistas, pelo menos em comparação com um cenário em que as forças revolucionárias liderariam realmente o movimento de libertação.
Para os comunistas, contudo, o domínio das forças conservadoras islâmicas no movimento de libertação é definitivamente um problema pelas razões mencionadas. A sua influência deve ser combatida e os comunistas devem também (e acima de tudo) assumir a liderança nesta luta.
Mas como é possível chegar a este ponto? Para fazer isso, devemos primeiro tomar consciência de como o Hamas conseguiu tornar-se o líder quase indiscutível da resistência palestiniana. As razões para isto são diferentes: por um lado, o fracasso, e mesmo a traição, das forças seculares na forma da OLP, que assinou o chamado “acordo de paz de Oslo”. Em Oslo, a OLP reconheceu Israel, mas sem receber uma garantia clara de um Estado palestiniano. Pelo contrário, a ocupação da Cisjordânia foi codificada pela divisão do país em três zonas, a maioria das quais estavam sob controlo exclusivo de Israel ou sob administração conjunta de Israel e da Autoridade Palestiniana (AP). A recém-fundada AP foi, portanto, tudo menos um passo no sentido da libertação da Palestina – pelo contrário, é um instrumento utilizado por Israel para manter a ocupação da Cisjordânia e suprimir a resistência palestiniana com uma espécie de força policial auxiliar palestiniana. Aos olhos de muitos palestinianos, o Tratado de Oslo foi uma rendição unilateral a Israel. O Hamas conseguiu distinguir-se como uma força de resistência consistente que rejeitou Oslo e a subjugação a Israel. Beneficiou do facto de o Estado israelita não o ter incomodado ou apoiado durante anos, a fim de enfraquecer o principal inimigo de Israel na altura, a OLP, através do aumento da concorrência intra-palestiniana 16 . O facto de o Hamas ter uma influência duradoura sobre as massas palestinianas em Gaza deve-se certamente menos ao seu objectivo programático de estabelecer um Estado islâmico do que ao seu verdadeiro papel de liderança na resistência armada. Para negar esta liderança ao Hamas, os comunistas não têm outra forma senão estar na vanguarda da resistência contra a ocupação. Este caminho não funciona através de críticas externas, mas apenas através da luta dentro do movimento de resistência, pelo que se deve ter cuidado para que a competição objectiva entre diferentes forças dentro do movimento de resistência não enfraqueça a resistência como um todo e, portanto, beneficie apenas as forças da ocupação. Se fosse esse o caso, desacreditaria o programa comunista aos olhos do povo.
Este ponto crucial é onde parte do movimento comunista na Alemanha e no mundo descarrilou. De vários quadrantes ouvimos argumentos como o de que o Hamas é reacionário; que aprendemos com as experiências iranianas; que uma aliança com os islamitas só acabará por levar ao massacre dos comunistas; que o Hamas quer criar um estado feudal ou um regime inspirado no EI (Estado Islâmico, Daesh) ou nos Taliban, ou mesmo exterminar os judeus em Israel.
Não queremos analisar todas essas afirmações com muitos detalhes. O problema com o Hamas não é o facto de ser “feudal” – porque não pode haver regresso ao feudalismo – mas sim o facto de ser burguês, de querer criar um Estado capitalista e não um Estado da classe trabalhadora. Equiparar o Hamas ao EI é simplesmente uma repetição da propaganda de guerra israelita que tenta especificamente transmitir exactamente esta imagem. Não tem muito a ver com a realidade, porque não só os métodos diferem significativamente, como o Hamas também tem mais em comum ideologicamente com o AKP e Erdogan do que com o EI. Embora o EI tenha assassinado sistematicamente “infiéis” e celebrado publicamente os seus actos de violência, as minorias religiosas vivem relativamente tranquilas sob o Hamas. E quando o Hamas toma medidas repressivas contra forças políticas concorrentes, isto não é certamente comparável ao terror de Estado aberto a que todos os grupos de resistência palestinianos são submetidos por Israel. A acusação de “anti-semitismo eliminatório” é ouvida frequentemente, especialmente na Alemanha, e ignora completamente o ponto que pretende descrever. O que move o Hamas não é o desejo de destruir o maior número possível de judeus, mas a luta contra o sionismo e o seu Estado. A lógica desta luta significa que os combatentes do Hamas por vezes também matam civis israelitas – não porque sejam judeus em si, mas porque são cidadãos do Estado com o qual o Hamas está em guerra. Em contraste, a carta de princípios do Hamas de 2017 (ao contrário da desactualizada carta de 1988) tenta diferenciar a luta contra o sionismo da luta contra o judaísmo e também rejeita explicitamente o anti-semitismo 17 . Não há nenhum argumento plausível para rejeitar estas formulações como mera duplicidade. No passado, o Hamas sinalizou claramente que aceitaria o Estado de Israel se Israel estivesse disposto a fazer concessões aos palestinianos. Segundo o líder do braço armado do Hamas, Khaled Meshal, em 2007: “Como palestiniano, falo hoje de uma exigência palestiniana e árabe de um Estado dentro das fronteiras de 1967. É verdade que na realidade existirá uma entidade ou Estado chamado Israel no resto do território palestiniano. Esta é uma realidade, mas não vou lidar com isso reconhecendo-a ou admitindo-a.”18 Ahmed Yusuf, conselheiro do líder político Ismail Haniya, também fez declarações semelhantes.
As acções do Hamas – as suas repetidas ofertas ao longo dos anos de um cessar-fogo com Israel, o tratamento humano dos prisioneiros, de acordo com as declarações dos reféns libertados, etc. – não provam a “mania anti-semita de extermínio” que a propaganda dominante mas também a esquerda alemã, que está obviamente sob a influência desta propaganda, atribuiu a ele,.
Na Alemanha, mas não só lá, existe uma fixação muito problemática no Hamas como um inimigo da “esquerda”, mesmo no espectro comunista. É problemático não porque o Hamas realmente mereça a nossa simpatia, mas porque distorce completamente a essência da questão. O que está a acontecer na Palestina não é uma guerra entre dois lados, ambos os quais devem ser rejeitados, não é certamente um “conflicto religioso” entre judeus e muçulmanos, mas sim uma guerra colonial por territórios, uma limpeza étnica do país e um genocídio. Contudo, num genocídio não existem “dois lados”, existem perpetradores e vítimas. Se os comunistas aceitarem a condição ditada pela classe dominante de que a condenação do Hamas como “anti-semita” é um pré-requisito para qualquer discussão e qualquer crítica cautelosa às políticas de Israel, então estaremos a dar aos capitalistas um instrumento de poder que teria de ser arrancado de suas mãos. Se for aceite que a raiz do problema não é a relação colonial de governo, mas o alegado anti-semitismo dos palestinianos, então torna-se impossível aproximar-se de uma solução para o conflicto.
Mas o problema não começa apenas quando os comunistas aceitam e repetem a propaganda do inimigo de classe. Pelo contrário, vislumbramos visões fundamentalmente problemáticas na estratégia da luta de libertação nacional. Os camaradas que consideram o “distanciamento” do Hamas como um pré-requisito para qualquer declaração, em última análise, não compreendem o que é uma luta de libertação nacional e anti-colonial. Eles não compreendem que a frase “o principal inimigo está no próprio país” se aplica a todos os estados capitalistas, mas não a um povo realmente colonizado; que Israel, ou melhor, a burguesia monopolista israelita, é o principal inimigo da classe trabalhadora palestiniana e do povo palestiniano e que na luta contra este adversário astronomicamente superior, todas as forças do movimento de libertação são forçadas a dirigir as suas fracas forças contra este inimigo; que o facto de um movimento de libertação nacional ser liderado por forças que irão combater os comunistas no futuro não é uma razão para virarmos as costas ao movimento de libertação, mas antes deveria estimular-nos a impulsioná-lo de forma ainda mais consistente. Independentemente de como avaliamos a FPLP e a FDLP, ou seja, as duas organizações de libertação palestiniana com reivindicações socialistas – mesmo uma força consistentemente comunista é forçada, nestas condições, a cooperar selectivamente com outras organizações de resistência.
Quando dizemos que os comunistas na Palestina devem lutar para liderar a resistência (em vez de se distanciarem dela porque é actualmente liderada pelo Hamas), então também podemos falar especificamente sobre o que isso significa. Significa não se submeter ao Hamas e desenvolver o seu próprio programa, as suas próprias lutas e as suas próprias reivindicações. Significa lutar por reformas económicas no interesse da classe trabalhadora, mesmo onde o Hamas governa, lutar por concessões para as massas empobrecidas, difundindo assim a ideia do socialismo e educando as massas. Nestas lutas, o Hamas é obviamente um inimigo. No caso de acções militares contra a potência ocupante, contudo, os comunistas teriam de verificar se a acção serve ou não o objectivo de libertar o povo e, nesta base, decidir se participam ou não nelas. É claro que se aplicam padrões diferentes aos comunistas e às forças burguesas, por exemplo, na medida em que se deve tentar evitar vítimas civis. Isto surge não apenas de considerações morais, mas sobretudo do facto de que a classe trabalhadora israelita não é o inimigo, mas deve ser conquistada como aliada. Mas tudo isto também significa que um certo nível de cooperação com o Hamas é possível e, em certos casos, desejável – e ao mesmo tempo o Hamas deve ser denunciado e exposto na medida em que as suas acções prejudicam a resistência e a luta armada. Através desta relação com as forças de resistência burguesas, a revolução socialista não é sacrificada em nome da libertação nacional, mas, pelo contrário, as perspectivas para a revolução socialista são fortalecidas precisamente através do direccionamento de todas as forças para a libertação nacional. Uma divisão da resistência baseada em diferenças ideológicas e apesar da unidade no objectivo estratégico de livrar-se da opressão colonial é sectarismo e só beneficia aqueles que estão no poder, que tudo farão para promover e aprofundar tais divisões.
A linha estratégica da luta de libertação nacional aqui delineada não é de todo nova. É fundamentalmente a linha que os partidos comunistas sempre seguiram nas lutas de libertação nacional, seja na China, onde o PC cooperou com o Kuomintang nacionalista burguês em certas situações e combateu-o noutras, ou na cooperação de Che Guevara com revolucionários não-comunistas na luta de libertação cubana, nos movimentos de libertação nacional no Vietname ou nos Balcãs na Segunda Guerra Mundial – em todo o lado os comunistas ganharam a liderança nesta luta de resistência lutando em conjunto com outras forças contra o inimigo principal, ganhando liderança nesta luta e, se necessário, como no caso da China ou da Grécia, assumindo também a luta contra as forças burguesas onde e quando se tornou necessário. Foram certamente cometidos erros tácticos (alguns deles muito graves), mas o erro não foi entrar em alianças com forças não-comunistas numa luta de libertação nacional.
Em que difere o caso da Palestina de todos estes exemplos? Alguns respondem dizendo que o Hamas é uma organização islamista e fundamentalista e que nós, como comunistas, defendemos o secularismo. Ambos estão correctos e ambos perdem completamente o foco neste ponto. O cerne de um conflicto não reside na sua super-estrutura ideológica, mas sim na sua base material. Portanto, não faz qualquer sentido equiparar o chauvinismo dos grupos palestinianos ao chauvinismo israelita. Ambos podem ser “maus” em abstracto, mas o marxismo nos ensina a não procurar a essência da questão em discursos, slogans e ideias, mas antes a prestar atenção àquilo de que a ideologia é uma expressão. Por um lado, existe um chauvinismo que justifica o colonialismo israelita, o sistema de apartheid que dele resultou inevitavelmente e, em grande medida, o genocídio, e por outro lado, existe um chauvinismo que é uma falsa cobertura ideológica para uma luta contra a opressão que é justificada em si mesma.
A resistência à colonização é a essência do nacionalismo do Hamas, ou pelo menos a base material do seu sucesso. E é outra trágica ironia da história que a única ideologia que tem sucesso no terreno hoje em se tornar o veículo para o desejo de libertação das massas palestinianas seja o islamismo, aquele que Israel e a CIA financiaram e fomentaram (por exemplo, no Afeganistão) para combater a resistência secular e o comunismo, respectivamente.
Que este seja o caso não nos deveria surpreender muito se for verdade que a religião nada mais é do que a “auréola” do “vale de lágrimas”, tal como Marx descreve as condições opressivas e desumanas das sociedades de classes 19 . O Islão político deu aos oprimidos na Palestina uma ideologia que não só parece compatível com a sua identidade nacional e denuncia, embora de uma forma idealistamente distorcida, o “vale de lágrimas” da vida terrena sob o capitalismo, mas também parece tornar suportável o martírio que, tendo em conta o imenso desequilíbrio de forças, representa o horizonte inevitável da luta para tantos filhos e filhas do povo palestiniano. Se os comunistas nesta situação histórica específica acreditam que o inimigo é o Islão político, então isso significa que confundiram a essência com a aparência da questão.
Um estranho florescimento deste desvio também ocorre quando os comunistas encontram as piores condenações para o Hamas, mas tratam o seu principal rival, a Fatah, com luvas de pelica. A razão para isto é, obviamente, mais uma vez, uma abordagem idealista que ignora o papel que estas forças realmente desempenham: nomeadamente, no caso da Fatah, o papel de actuar como administradores de um bantustão para os governantes coloniais 20 e, não menos importante, de desempenhar funções repressivas em favor de Israel. Apesar de tudo o que é problemático e digno de crítica sobre o Hamas, a Fatah representa um problema muito maior para a luta de libertação palestiniana.
Fonte: KO
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